O estado ao lado
Inspirado nas aulas de escrita contra hegemônica do curso de
extensão “A Palavra Perto da Boca”, dado pela professora Marília Floôr Kosby,
resolvi escrever um pouco sobre a experiência de viver no ‘estado ao lado’. Sou
de Manaus, nascido e criado, e aos 26 anos mudei para Boa Vista/RR para cursar
antropologia na UFRR. Tudo meio inesperado, nunca havia cogitado morar aqui.
Cheguei tendo apenas uma pessoa na cidade, minha irmã, que aqui estava há mais
ou menos um ano.
Primeiras impressões, “nossa, aqui é tão quente quanto
Manaus, as vezes é até mais”. Cadê os teatros da cidade, as exposições, a movimentação
artística cultural? Frustrado. Fui me inteirando. Conhecendo um pouco mais. As
aulas começaram e fui conhecendo as pessoas. Casa do Neuber. Parece que esse
era o rolê do momento em 2017. Art Pub. Cerveja cara, música agradável, ponto
de encontro de todos que não são daqui. Ouvi falar da Roraimeira, movimento
artístico-cultural. É, parece que aos poucos estou pegando o ritmo. E o ritmo é
não ter pressa.
Mas como discutíamos no laboratório de escrita (a extensão A
Palavra Perto da Boca), vamos falar dos aspectos ‘invisíveis’ ou melhor das
coisas não tão óbvias. Mas o problema é que eles não existem para mim. É tudo
muito pulsante na cidade que não tem quase movimento. O sol, as cores, os rios,
as praças, o outdoor pedindo o retorno da monarquia. Sim. Um outdoor em frente
a um CTG (Centro de Tradições Gaúchas) que pedia o retorno da monarquia.
Meu ritmo mudou completamente, minha locomoção é com
bicicleta agora. Todo mundo diz, em Boa Vista nada é longe. Pior que é verdade.
O principal lazer por aqui é sentar no bar e tomar um litrão. As vezes todo
dia. E quase sempre mais de um. Alguns preferem passear nas praças. E tem aqueles que mandam uma mensagem
no meio da tarde, “vamos tomar banho de rio?”. E é ótimo. Em dez minutos a
gente chega no rio e fica por lá papeando, tomando banho, pegando sol e as
vezes tomando uma cerveja. Não importa o dia, você consegue ir ao rio a hora
que quiser, só precisa ter um tempinho livre. A cidade de muito sol e de muito
vento.
Mas tem uma coisa que virou sinônimo de Boa Vista.
Venezuelanos. Há alguns anos tem acontecido uma onda migratória muito forte no
estado. Tem muita gente que não gosta. Eles dizem “vieram roubar nossas vagas
de emprego, vagas nas escolas, nos hospitais, vieram roubar, eles estão
acabando com a cidade”. Mas também tem aqueles que entendem que eles não
escolheram estar aqui, entendem que foram as condições do país deles que os
colocaram nessa situação. Juntos com eles vieram mais um monte de gente, mas me
parece que alguns não percebem. Só em Boa Vista existem 11 abrigos de apoio a
imigrantes. E muitas das pessoas que trabalham neles não são daqui. Nas rodas
de conversa eles são identificados como “a galera de ong”. São paulistas,
gaúchos, cariocas, pernambucanos, mato-grossenses e tem gente até de outros países. Tem gente de
todo lugar.
Algumas coisas me chamam muita atenção. Experimente sentar no
bar em frente a UFRR para tomar uma cerveja. E observe. Outro dia estava com
alguns colegas lá e quando me dei conta podia ouvir vários idiomas nas
conversas que rolavam ao meu redor. Ao meu lado tinha uma colega de El
Salvador, que falava um belo de um portunhol. O cara que me atendia quando eu
pedia cerveja era venezuelano. Na mesa ao lado tinha um grupo de haitianos
falando francês. Fui ao banheiro e na mesa mais a frente tinha um grupo de
haitianos falando crioulo. Sem falar na diversidade de sotaques brasileiros que
tinham ali. Paulistas. Nordestinos. Gaúchos. E os nortistas. Estávamos todos lá.
Aqui também tem uma coisa que ainda não tinha visto. O
Insikiram. É um instituto dentro da UFRR que oferece cursos e vagas voltados
exclusivamente para os indígenas. Afinal é Roraima, estado com maior número de
indígenas no Brasil (proporcionalmente). Falando nisso, tem um grupo musical composto por três
irmãos que são macuxi (etnia local). O grupo Sociedade de Esquina. O nome vem
do livro “Sociedade de Esquina” do sociólogo americano Foote Whyte. Os três
irmãos estudam na UFRR. Um cursa antropologia, a irmã cursa relações
internacionais e o outro irmão cursa psicologia.
Morando aqui pude, também, fazer parte do projeto “História e
Memória: ações de identificação de comunidades de matriz africana em Boa
Vista/RR”. O projeto me proporcionou conhecer alguns terreiros de umbanda e de
candomblé que existem na cidade. Conhecer um pouco de suas histórias, de sua
cultura, de sua fé e de sua resistência. Resistência foi uma palavra que ouvi
muito durante o campo na pesquisa. Eu vi uma boa vista negra. Alguns com muito
medo da exposição. Outros com muita força e vontade de mostrar sua história. Me
emocionei. Ri muito. Foram muitas histórias de luta, de afirmação da sua
negritude, de preconceito. Terreiros cheios de cores, todos eles. Cheio de vida
e de alegria. Que se ajudam entre si. Fazer parte desse projeto talvez tenha
sido a melhor coisa que me aconteceu na cidade.
Acho que eu vim fazer antropologia no lugar certo. Nunca
tinha vivido nada parecido com isso. Minha bolha era pequena e eu nem fazia
questão de sair dela. De fato estou vivendo uma grande experiência
antropológica. Tenho vivido muitas coisas que com certeza me marcarão. Aliás,
já estão marcando. Amadurecimento. Aprendizado. Autoconhecimento. Foi tudo isso
que Boa Vista me proporcionou. Longe de casa, dos amigos e dos familiares
sempre tinha alguém para me confortar. Ou algo para me distrair. Boa vista
nunca me deixou sozinho. Boa Vista me acolheu e me acolhe.
Everton Pimentel
Que lindo texto Everton... Meus parabéns pela sua sempre sensibilidade e amorosidade. Parabéns também a leve e forte presença da Professora Marília no seu processo de aprendizado.
ResponderExcluirMuita GRATIDÃO por ter cruzado com pessoas que se lançam nas fronteiras da vida.
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